Em entrevista à Arpen-GO, Amanda Souto Baliza, presidente da Comissão Nacional da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB, destaca os avanços, desafios e a importância da formalização das uniões homoafetivas como ato de resistência e conquista de direitos
O Dia do Orgulho LGBTQIA+, celebrado mundialmente em 28 de junho, vai muito além das cores vibrantes, dos desfiles e da alegria que marcam a data. Trata-se de um momento essencial de visibilidade, resistência e, sobretudo, de reflexão sobre os caminhos já percorridos e os muitos desafios que ainda persistem na luta por igualdade de direitos. Nesse contexto, os cartórios brasileiros ocupam um lugar central, sendo responsáveis pela formalização de uniões estáveis e casamentos homoafetivos — um passo fundamental para garantir segurança jurídica, patrimonial e afetiva à população LGBTQIA+.
A Resolução nº 175 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 2013, foi um marco que consolidou o direito ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, contribuindo para o fortalecimento do princípio da igualdade perante a lei. Desde então, o papel das serventias extrajudiciais na efetivação desses direitos tem sido de extrema relevância, permitindo que casais homoafetivos tenham acesso aos mesmos instrumentos legais já garantidos a casais heterossexuais. Para além da formalização, essa conquista representa uma importante quebra de estigmas e um passo decisivo no enfrentamento da discriminação estrutural que ainda marca a sociedade brasileira.
Para aprofundar esse debate, a Arpen-GO conversou com Amanda Souto Baliza, conselheira seccional da OAB-GO e presidente da Comissão Nacional da Diversidade Sexual e de Gênero do Conselho Federal da OAB. Com atuação firme na defesa dos direitos da população LGBTQIA+, Amanda compartilhou sua visão sobre os avanços jurídicos conquistados, o papel estratégico dos cartórios de registro civil na consolidação desses direitos e como a formalização de uniões civis também pode ser um poderoso gesto de orgulho, resistência e cidadania.
Confira a entrevista na íntegra:
ARPEN/GO: Qual a importância de celebrar o Dia do Orgulho LGBTQIA+ também como um momento de reflexão sobre os avanços e os desafios jurídicos enfrentados pela comunidade no Brasil?
Amanda Souto Baliza: Os direitos das pessoas LGBTQIA+ no Brasil foram construídos em boa parte pela via da judicialização. O sistema de Justiça tem e teve um papel muito importante nessa construção, além dos desafios que são e serão enfrentados no futuro.
Em 2006, a Maria Berenice Dias realizou um levantamento e concluiu que a população LGBTQIA+ não tinha dezenas de direitos já garantidos ao restante da população. A celebração é importante para demonstrar que esses avanços precisam ser mantidos e que precisamos avançar ainda mais no enfrentamento à violência, à discriminação e a outras mazelas da sociedade.
ARPEN/GO: Desde a regulamentação do casamento homoafetivo no Brasil, que avanços a senhora observa no acesso da população LGBTQIA+ aos direitos civis nos cartórios?
Amanda Souto Baliza: Com a Resolução 175/2013 do CNJ, passamos por uma grande evolução na cultura jurídica brasileira. A ADI 4277, julgada em 2011, permitia somente a união estável, tanto que o acórdão usava as expressões “casais heteroafetivos” e “pares homoafetivos”.
Com a garantia do casamento homoafetivo, tivemos uma série de problemas resolvidos, como a partilha de bens de maneira justa, adoção, seguros, benefícios previdenciários, etc.
ARPEN/GO: Os cartórios brasileiros têm cumprido bem o seu papel na efetivação dos direitos de casais homoafetivos. Qual a importância do serviço prestado pelos cartórios para a população LGBTQIA+?
Amanda Souto Baliza: Hoje, raramente recebo reclamações de cartórios em relação a direitos de casais homoafetivos ou outros direitos das pessoas LGBTQIA+ no geral.
Quando alguma situação pontual acontece, é comum que a corregedoria dos tribunais resolva de maneira rápida. Mas nem sempre foi assim: logo após a edição da Resolução 175/2013, havia vários agentes do sistema de Justiça que questionavam casamentos homoafetivos na via judicial — sendo um célebre caso o de um promotor de Santa Catarina que, posteriormente, foi afastado daquela função após intervenção da OAB local.
ARPEN/GO: Qual a relevância do casamento em cartório para garantir a segurança patrimonial, sucessória e familiar de casais LGBTQIA+?
Amanda Souto Baliza: Por mais que a união estável possa ser reconhecida de fato, a segurança jurídica do casamento traz uma tranquilidade maior para quem busca resguardar essas questões — e nem preciso dizer que tranquilidade e paz são coisas que não têm preço, não é mesmo?
Por isso, é importante que as pessoas que desejam se casar ou registrar uma união estável para garantir essas seguranças contratem um(a) advogado(a) de confiança, que possa orientar sobre o regime de bens, necessidade de pacto antenupcial e outras dúvidas que possam surgir.
ARPEN/GO: A senhora acredita que a formalização dessas uniões também tem um papel simbólico na luta contra o preconceito?
Amanda Souto Baliza: Com toda certeza. Quatorze anos após a decisão da ADI 4277 e doze anos após a Resolução 175/2013, o mundo não acabou como muitos diziam que aconteceria.
A formalização das uniões quebra um antigo e perverso estereótipo de que pessoas LGBTQIA+ seriam promíscuas, que tinham como único foco de vida uma visão hipersexualizada do mundo ou que queriam destruir as famílias tradicionais. Pessoas LGBTQIA+ não querem destruir a família de ninguém — simplesmente querem que as suas também sejam respeitadas.
ARPEN/GO: Em sua visão, qual é a importância de divulgar os dados sobre casamentos homoafetivos registrados em cartório, especialmente durante o mês do Orgulho?
Amanda Souto Baliza: Dados estatísticos são fundamentais para a formulação de políticas públicas em todas as áreas. E, nesse caso específico, ajudam a enfrentar o preconceito — como disse anteriormente, sobre estereótipos.
ARPEN/GO: Como a OAB tem atuado para garantir os direitos civis da população LGBTQIA+ nos âmbitos administrativo e judicial?
Amanda Souto Baliza: A OAB tem como finalidades estatutárias (art. 44, I da Lei 8.906/94) a defesa da democracia, dos direitos humanos, da justiça social etc.
No âmbito da população LGBTQIA+, existem as Comissões da Diversidade Sexual e de Gênero em nível municipal, estadual e federal. A OAB já se manifestou várias vezes em ações coletivas e de controle concentrado sobre os direitos da população LGBTQIA+.
A Ordem reconhece o direito ao uso do nome social desde 2016 e também editou a Súmula 11, que proíbe que pessoas com histórico de violência contra a população LGBTQIA+ se inscrevam na OAB.
Mais recentemente, a infração ética de discriminação foi incorporada ao rol de infrações do art. 34 do Estatuto, estando prevista no inciso XXX. A infração tem pena de suspensão — a mais grave penalidade, à exceção da exclusão.
Durante minha gestão à frente da Comissão Nacional, aprovamos por unanimidade, no Pleno do Conselho Federal, a criação do Provimento da Diversidade, que reconhece direitos da advocacia LGBTQIA+. Em dezembro de 2024, conseguimos também a aprovação do Provimento para Julgamento sob Perspectiva Racial e da Diversidade Sexual.
ARPEN/GO: Que mensagem a senhora deixa para casais LGBTQIA+ que desejam formalizar sua união e, muitas vezes, têm medo de sofrer discriminação?
Sua felicidade vale mais que o medo. Hoje existem muitos mecanismos jurídicos para enfrentar a discriminação. Sua união não precisa ser motivo de medo — ela tem tudo para ser o início da mais bela das histórias.
ARPEN/GO: Como a formalização em cartório pode ser um gesto de orgulho, resistência e cidadania?
A formalização em cartório representa o reconhecimento oficial da união pelo Estado brasileiro — o reconhecimento dos direitos garantidos em nossa Constituição Federal. Fazer cumprir o seu direito é o maior ato de resistência que existe.
Por Camila Braunas, Assessora de Comunicação da ARPEN/GO.