A ARPEN/GO conversou com Lenise Friedrich Faraj, titular do cartório de Palestina de Goiás, que analisa em seu artigo premiado como a informatização do Registro Civil tem fortalecido a autenticidade dos atos e reduzido os riscos de falsificação
A ARPEN/GO, conversou com a registradora Lenise Friedrich Faraj, titular do Tabelionato de Notas, de Protesto de Títulos, Tabelionato e Oficialato de Contratos Marítimos, de Registro de Imóveis, de Registro de Títulos e Documentos, Civil das Pessoas Jurídicas, Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutelas de Palestina de Goiás, a grande vencedora da quarta edição do Conarci Acadêmico 2025, concurso nacional promovido pela Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) que estimula a produção científica na área do Registro Civil. Natural da Bahia, onde atuou por mais de sete anos como registradora civil, Lenise assumiu o cartório goiano em agosto de 2024 e rapidamente se destacou pela dedicação e pelo olhar atento às inovações tecnológicas aplicadas à segurança dos atos registrais.
O artigo vencedor, que aborda a evolução da tecnologia da informação na prevenção de fraudes no Registro Civil: o caso de Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield como contexto para análise da aplicação da tecnologia na identificação de pessoas, parte de um caso real amplamente divulgado pela imprensa, onde um magistrado aposentado, viveu por mais de 30 anos com uma identidade falsa, obtida a partir da falsificação de uma certidão de nascimento. A partir desse episódio, a autora propõe uma reflexão sobre como a transformação digital dos cartórios brasileiros — com a implantação de sistemas como a Central de Informações do Registro Civil (CRC), o selo digital e o QR Code — tem sido fundamental para reduzir as brechas que antes permitiam a circulação de documentos falsos.
Na entrevista a seguir, Lenise compartilha os bastidores da conquista, fala sobre os desafios enfrentados durante a pesquisa e comenta as perspectivas para o futuro tecnológico do Registro Civil. Com uma visão crítica e ao mesmo tempo sensível, ela destaca que o avanço da informatização deve caminhar lado a lado com a inclusão social, garantindo que todos os cidadãos — inclusive os mais vulneráveis — possam usufruir dos benefícios trazidos pela modernização dos serviços extrajudiciais.
Confira a entrevista na íntegra:
ARPEN/GO: Parabéns pelo prêmio! Como você recebeu a notícia de que ficou em primeiro lugar no Conarci Acadêmico e representar o estado de Goiás?
Lenise Friedrich: Minha irmã que viu a informação nas redes sociais da Arpen-Brasil e me ligou pra me contar. Foi muito especial receber a notícia por ela.
Fui em todas as últimas edições do Conarci e sempre tive vontade de participar do Conarci Acadêmico, um concurso de artigos com temas relacionados ao RCPN. Porém, com a correria do dia a dia, sempre ficou difícil parar e escrever algo. Esse ano foi a quarta edição do Conarci Acadêmico e a primeira vez que participei.
ARPEN/GO: O seu artigo aborda a evolução da tecnologia da informação na prevenção de fraudes no Registro Civil. O que te motivou a escolher esse tema?
Lenise Friedrich: A escolha do tema se deu em razão da repercussão que houve na mídia de um caso envolvendo um magistrado aposentado que supostamente utilizou uma certidão de nascimento falsa para viver com o nome de Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield. A partir desse caso passei a pensar sobre como era vulnerável a emissão de certidões até há poucos anos atrás, quando não havia lastro nos atos e nem critérios e facilidades para conferência das certidões.
As certidões eram emitidas em papel branco, sem padrão, sem qualquer elemento de conferência ou de segurança, e provavelmente foi isso que possibilitou que, supostamente, José Eduardo Franco dos Reis vivesse por mais de 30 anos com o nome de Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield.
Utilizando o nome falso, obtido por meio da falsificação da certidão de nascimento, ele obteve documentos autênticos e exerceu a magistratura no TJSP por mais de 20 anos.
Hoje, com padrões tecnológicos incorporados aos atos das serventias extrajudiciais, seria bem mais difícil ele conseguir sustentar uma certidão falsa por tanto tempo, e isso me chamou atenção, já que envolve diretamente nossa função.
ARPEN/GO: Qual foi o maior desafio que você encontrou durante a pesquisa e elaboração do artigo?
Lenise Friedrich: Creio que captar informações sobre o caso, pois como não há acesso ao processo que apura os fatos, as informações ficam restritas ao que foi divulgado pela mídia. É sabido que houve uma falsificação da certidão de nascimento, porém não há divulgação de como se deu essa falsificação, se estava em papel de segurança autêntico, se foi alterada, etc.
Sem dúvida o acesso a essas informações enriqueceria minha pesquisa e ajudaria o registrador civil e outros profissionais a conhecer – e reconhecer – formas de falsificação.
ARPEN/GO: Você poderia resumir, de forma prática, o ponto central do seu estudo para nossos leitores que não são especialistas na área?
Lenise Friedrich: Até um passado recente, apesar de a tecnologia da informação já estar desenvolvida, ela não fazia parte da rotina do Registro Civil, de modo que os registros eram lavrados manualmente nos “livrões”. Da mesma forma, não havia elementos de segurança nas certidões emitidas pelos cartórios, de modo que quem as recebia ficava vulnerável a falsificações.
Assim, não era tão difícil se falsificar uma certidão, pois não haviam elementos de segurança que proporcionassem a possibilidade de conferência daquele ato.
Com isso, um sujeito viveu por décadas com nome supostamente falso, exercendo inclusive a magistratura no maior tribunal do país, sendo descoberto apenas em 2024, quanto tentou renovar seu documento de identidade.
Isso porque hoje existem diversos elementos de segurança nas certidões, como número da matrícula, selo digital, QR code para conferência da autenticidade daquele ato. Além disso, existem plataformas oficiais para consulta dos meios oficiais de comunicação com as serventias (CNJ, SEE), o que garante que de fato quem confirma a autenticidade do ato quando solicitado é o próprio cartório. Além disso, há diversos bancos de dados já disponíveis que permitem que órgãos de identificação e serventias de Registro Civil possam praticar seus atos com mais segurança.
Antes, sem essas seguranças, todas possibilitadas por conta da evolução da tecnologia da informação, de fato não era tão difícil se falsificar uma certidão de nascimento. E isso de fato permitiu que, supostamente, Edward Albert – ou José Eduardo – de fato o fizesse.
Vale ressaltar que o artigo não trata de nenhuma tecnologia revolucionária. Mas de mecanismos já cotidianos, totalmente absorvidos pelas serventias.
ARPEN/GO: No artigo, você utiliza o caso de Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield como contexto. Como esse caso ilustra os problemas de fraude que podem ocorrer no registro civil?
Lenise Friedrich: O caso parte de uma falsificação de certidão. Infelizmente, falsificação de atos registrais e notariais são uma realidade, acontece diariamente. Tanto é que todos os dias recebemos na serventia inúmeros ofícios dando conta de falsificações dos mais diversos atos.
Boa parte das falsificações são grosseiras e facilmente identificáveis. Porém, há aquelas que vem até em papel de segurança – o que demonstra que ainda há muito a evoluir para se garantir a integridade dos atos registrais, dificultando – ou até impossibilitando – sua falsificação.
ARPEN/GO: Quais tecnologias ou métodos você identificou como mais eficazes para prevenir fraudes em registros civis atualmente?
Lenise Friedrich: No caso analisado, o que permitiu a verificação da falsidade da certidão apresentada foi o número da matrícula constante na certidão de nascimento. Ao analisar o documento apresentado, o instituto de identificação verificou que aquele número de matrícula se referia ao registro de outra pessoa – no caso, José Eduardo dos Reis, supostamente o nome verdadeiro de Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield. Isso é possível porque hoje dispomos de bancos de dados informatizados, que rapidamente podem identificar quem é o registrado no registro que possui certo número de matrícula.
ARPEN/GO: Na sua opinião, quais são as barreiras que ainda dificultam a implementação completa dessas tecnologias nos cartórios brasileiros?
Lenise Friedrich: Especificamente para o Registro Civil, creio que a questão financeira seja uma barreira. Há estados da federação que possuem tabelas de emolumentos já defasadas, com remuneração insuficiente para que o titular arque com todos os padrões tecnológicos exigidos
Por exemplo, lançar todos os atos retroativos na CRC é uma obrigação e sem dúvida vai viabilizar uma rápida pesquisa acerca de qualquer registro. Porém tal providência requer alto investimento por parte da serventia, pois trata-se de um trabalho bastante árduo, que demanda vários meses de serviço.
ARPEN/GO: Quais mudanças você acredita que veremos nos próximos anos no uso de tecnologia para prevenção de fraudes no Registro Civil?
Lenise Friedrich: O Registro Civil passará por um novo momento com a IdRC, que permitirá uma autenticação segura e a indexação de atos, o que resulta em mais segurança e conformidade.
A IdRC já está operante e recebe milhares de novos usuários diariamente, formando um banco de dados robusto e seguro.
ARPEN/GO: Você acredita que os cartórios no Brasil estão preparados para acompanhar essa evolução tecnológica?
Lenise Friedrich: O Brasil é muito desigual e essa desigualdade se alastra também pelas serventias de Registro Civil. Ao mesmo tempo que temos grandes e modernos cartórios nas capitais, temos pequenos ofícios no interior, que muitas vezes mal possuem renda para arcar com as despesas mínimas para funcionamento da serventia. Essa realidade tem de ser considerada.
Por isso, é importante o estabelecimento de uma complementação de renda mínima justa, que possibilite que os pequenos cartórios acompanhem as evoluções e atendam às exigências de padrões mínimos tecnológicos. Com isso, creio que os cartórios de Registro Civil ficam preparados para todo tipo de evolução.
ARPEN/GO: Que conselho você daria para outros estudantes ou pesquisadores que querem estudar a aplicação de tecnologia na área de registros públicos?
Lenise Friedrich: Que busquem soluções plausíveis, sem esquecer dos registrados em situação de vulnerabilidade, que também são usuários dos cartórios e nem sempre terão meios de participar de toda a evolução tecnológica. A tecnologia é uma ferramenta importante para o Registro Civil, porém, deve sempre se considerar a realidade da população.
Por Camila Braunas, Assessora de comunicação da ARPEN/GO.