A ARPEN/GO conversou com Victor Pina Bastos, registrador civil em Goiás, sobre o papel do Registro Civil na valorização da identidade cultural e no fortalecimento da cidadania indígena, a partir da cartilha lançada pelo CNJ no Acampamento Terra Livre
A recente publicação da Cartilha Indígena, que regulamenta a Resolução Conjunta nº 12/2024 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), representa um marco fundamental para o fortalecimento do Registro Civil como instrumento de cidadania plena e respeito à diversidade cultural.
Com diretrizes claras sobre o uso de nomes indígenas, a possibilidade de indicar a etnia, a aldeia ou o território de origem como naturalidade, e o registro em língua indígena, a cartilha surge como uma aliada no cotidiano dos cartórios. Também reforça a importância do intérprete como agente de inclusão, detalha as hipóteses de registro tardio e a documentação necessária, e assegura isenção de emolumentos em determinados casos. Ao promover segurança jurídica com sensibilidade cultural, o material facilita o trabalho dos registradores diante da complexidade dos registros que envolvem as múltiplas realidades dos povos indígenas no Brasil.
O lançamento simbólico da cartilha durante o Acampamento Terra Livre, em Brasília, intensifica ainda mais seu valor político e social. Para saber mais sobre o assunto, a ARPEN/GO conversou com Victor Pina Bastos, que compartilhou sua visão sobre a importância da iniciativa.
Confira a entrevista na íntegra:
ARPEN/GO: O que representa, para o Registro Civil, o lançamento da Cartilha Indígena da Resolução nº 12 do CNJ?
Victor Pina: Representa a consolidação de um compromisso institucional com a cidadania plena. A cartilha é uma ferramenta pedagógica, acessível e orientadora que traduz a Resolução Conjunta nº 12/2024 em orientações práticas para os registradores e, principalmente, em linguagem compreensível para os próprios povos indígenas. Mais do que um documento, ela é um gesto simbólico e técnico de respeito à identidade, à autodeterminação e à diversidade cultural indígena.
ARPEN/GO: Como essa cartilha pode auxiliar os registradores civis no atendimento às populações indígenas?
Victor Pina: A cartilha traz diretrizes claras e visualmente acessíveis sobre procedimentos específicos, como o uso de nomes indígenas, inclusão de etnia, aldeia ou território como naturalidade, e a possibilidade de registro em língua indígena.
Ela também reforça o papel do intérprete como agente de inclusão, esclarece a documentação exigida e detalha as hipóteses de registro tardio — sempre com foco na autonomia do declarante e no respeito à sua identidade cultural.
ARPEN/GO: Quais os principais pontos abordados na cartilha e como ela contribui para a aplicação prática da Resolução nº 12?
Victor Pina: Os principais pontos incluem:
- A possibilidade de inclusão de sobrenomes indígenas (povo, etnia, clã) a pedido do declarante;
- A naturalidade podendo conter a aldeia ou território de origem;
- O uso facultativo da língua indígena no registro;
- O papel do intérprete nos casos de não compreensão do português;
- As regras para o registro tardio e para a alteração de prenome e sobrenome, com isenção de emolumentos em certos casos.
A cartilha traduz essas normas em orientações práticas, facilitando a atuação dos registradores com segurança jurídica e sensibilidade cultural.
ARPEN/GO: O lançamento dessa cartilha durante a semana do Acampamento Terra Livre, em Brasília, tem um significado simbólico importante. Como o senhor avalia essa escolha de momento?
Victor Pina: A escolha de lançar a cartilha no Acampamento Terra Livre foi emblemática. É mais do que uma questão de oportunidade: é um gesto de escuta e reconhecimento.
Levar esse material justamente para um espaço de protagonismo indígena significa colocar o direito onde ele precisa estar — no território simbólico e real dos povos originários. É o Estado brasileiro deixando de falar “sobre” e começando a falar com.
ARPEN/GO: De que forma a participação indígena em eventos como esse contribui para a construção de políticas públicas mais inclusivas no Registro Civil?
Victor Pina: A presença indígena ativa nos espaços de construção normativa é o que transforma políticas públicas em ações legítimas. Quando os povos indígenas participam, suas demandas são trazidas com autenticidade e urgência.
Isso evita abordagens generalistas e estimula soluções específicas, respeitosas e funcionais.
ARPEN/GO: O que mudou, na prática, com a Resolução nº 12 do CNJ para os registros civis de indígenas?
Victor Pina: A Resolução nº 12/2024 ampliou o alcance da Resolução nº 3/2012, modernizando e fortalecendo a possibilidade de que os registros civis reflitam de fato a identidade indígena. Ela regulamenta o uso do nome indígena como prenome e sobrenome, permite o registro em língua originária, reconhece a naturalidade associada ao território indígena e formaliza a presença do intérprete como um direito.
Também atualiza as diretrizes para registro tardio, com mecanismos específicos de comprovação cultural. É um marco normativo na interseção entre o direito registral e a justiça social.
ARPEN/GO: Quais são os principais desafios enfrentados pelos cartórios ao registrar o nome e a identidade de indígenas de diferentes etnias?
Victor Pina: Um dos maiores desafios é o distanciamento cultural. Muitos cartórios ainda precisam de apoio para lidar com estruturas linguísticas, lógicas de nomeação ou mesmo com a diversidade de documentos apresentados por populações indígenas.
Outro desafio é o sistema registral informatizado, que nem sempre comporta as variações de grafia ou dados em línguas indígenas.
Por fim, havia a questão da insegurança do próprio registrador diante de casos mais complexos, já que cada etnia possui características culturais marcantes que dialogam diretamente com o Registro Civil. A cartilha ajuda muito nisso.
Exemplo disso são povos originários que, com o passar do tempo ou por feitos específicos, mudam de nome — e outros em que a pessoa pode ter mais de cinco nomes sociais diferentes, a depender da situação em que se encontra. E não se tratam de apelidos ou títulos, são todos nomes legítimos.
ARPEN/GO: A cartilha trata da possibilidade de uso de nomes indígenas e da etnia no registro de nascimento. Como isso tem sido recebido nos cartórios?
Victor Pina: Tem sido recebido com curiosidade, poucos casos com resistência, mas, sobretudo, com a sensação de que estamos lidando com algo necessário. A possibilidade de lançar o povo, a etnia, o clã como sobrenome, por exemplo, é uma forma legítima de preservar a identidade.
A cartilha oferece respaldo e clareza, o que encoraja os colegas a lidarem com esses pedidos com segurança e acolhimento. E, além disso, está sendo elaborado um manual que já conta com mais de 100 páginas para auxiliar o registrador, principalmente nos casos mais complexos que o dia a dia nos apresenta.
ARPEN/GO: Por que é importante garantir que o Registro Civil respeite a identidade cultural dos povos indígenas?
Victor Pina: Porque o registro é a primeira chancela do serviço público sobre a existência de alguém. Quando ele apaga ou desconsidera a identidade cultural, reforça um ciclo histórico de invisibilização.
Garantir que essa identidade seja respeitada é afirmar o pertencimento e a dignidade dessa pessoa desde o início da sua trajetória.
ARPEN/GO: Como ações como essa cartilha podem ajudar a combater o sub-registro entre os povos originários?
Victor Pina: Elas tornam o processo mais acessível, mais transparente e menos intimidador. Muitas vezes o sub-registro acontece por medo, por desconfiança ou por desconhecimento. Quando há materiais como essa cartilha, que explicam com linguagem visual, simples e objetiva, criamos uma ponte entre o cartório e as comunidades — e diminuímos o abismo documental que ainda existe.
ARPEN/GO: O que o senhor acredita que ainda precisa ser feito para que o atendimento nos cartórios seja verdadeiramente inclusivo para todos os povos indígenas do Brasil?
Victor Pina: A cartilha é um grande passo, mas ainda temos um caminho. Precisamos de mais capacitação contínua, políticas públicas voltadas à estruturação dos cartórios em áreas indígenas, um fundo de ressarcimento que permita ampliar essas políticas e, ao mesmo tempo, melhorar a qualidade do serviço.
E, o mais importante: canais permanentes de diálogo com as lideranças indígenas. Inclusão não é um ponto de chegada, é um processo de escuta constante.
Assessoria de Comunicação da ARPEN/GO.