Casamento no Exterior: o que muda para o brasileiro?

Em entrevista à ARPEN/GO, Dra. Márcia Fidelis revelou os cuidados legais e o papel do Registro Civil no regime de bens dos brasileiros que se casam fora do país

Em um cenário cada vez mais globalizado, no qual cresce continuamente o número de brasileiros que vivem, se casam ou estabelecem relações no exterior, o Direito das Famílias é desafiado a acompanhar a complexidade das relações transnacionais. Nesse contexto, o papel dos cartórios de Registro Civil torna-se essencial para garantir segurança jurídica aos atos praticados fora do país. Afinal, como assegurar que um casamento celebrado fora do Brasil produza efeitos válidos e respeite o regime de bens desejado pelos cônjuges? Quais cuidados são exigidos dos brasileiros que escolhem dizer “sim” em solo estrangeiro?

Para esclarecer essas e outras questões, a Arpen/GO entrevista a Dra. Márcia Fidelis — registradora, professora, palestrante e atual presidente da Comissão Nacional dos Notários e Registradores do IBDFAM. Com vasta experiência na área e profundo conhecimento da legislação nacional e internacional, a entrevistada traz luz ao tema “O Regime de Bens do Brasileiro Casado no Estrangeiro”, abordando desde as normas da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) até os reflexos práticos no dia a dia dos cartórios.

Nesta conversa, a Dra. Márcia destaca os cuidados necessários antes e depois da celebração do casamento no exterior, o papel do pacto antenupcial lavrado no Brasil, a importância da transcrição do casamento estrangeiro para sua validade nacional e os desafios enfrentados pelos registradores diante da diversidade de legislações envolvidas.

Uma leitura essencial para profissionais da atividade extrajudicial e para todos que desejam compreender melhor os efeitos jurídicos das uniões internacionais sob a ótica do Registro Civil brasileiro.

Confira a entrevista na íntegra:

ARPEN/GO: Quais as principais diferenças entre o casamento realizado no Brasil e o casamento realizado no exterior?

Márcia Fidelis: A principal diferença está no ordenamento jurídico que rege o ato da celebração. Quando um casamento é realizado no Brasil, aplica-se integralmente a legislação brasileira, tanto quanto às formalidades quanto aos efeitos, inclusive o regime de bens, que será aquele escolhido pelos cônjuges por meio de pacto antenupcial ou, na ausência deste, o regime legal supletivo, atualmente o da comunhão parcial de bens.

Já no casamento realizado no exterior, a regra brasileira é observar o chamado “estatuto pessoal”, conforme previsto na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), segundo o qual a capacidade das pessoas e os efeitos do casamento são regidos pela lei do domicílio dos nubentes. Assim, o regime de bens dos brasileiros casados fora do país será determinado, pelas regras do direito brasileiro, com base no local da residência dos nubentes no momento do casamento, independentemente da legislação do país onde foi celebrado o ato.

Além disso, casamentos celebrados no exterior exigem transcrição em cartório brasileiro para produzirem efeitos no Brasil. A forma de oficialização, os documentos exigidos e as exigências linguísticas (como a tradução juramentada e apostilamento) também variam, o que demanda atenção especial por parte dos registradores e dos casais envolvidos.

ARPEN/GO: Como avalia a relevância desse assunto atualmente, diante do aumento de casamentos entre brasileiros e estrangeiros ou celebrados fora do país?

Márcia Fidelis: O tema é cada vez mais atual e relevante. O crescimento da mobilidade internacional, o aumento de uniões binacionais e a escolha de muitos brasileiros por celebrar casamento fora do país — seja por vínculo afetivo com estrangeiros, seja por razões profissionais, acadêmicas ou religiosas — exige uma atenção especial ao tratamento jurídico desses vínculos.

O Direito das Famílias, e em particular o Registro Civil, precisa estar preparado para garantir segurança jurídica a esses casais, reconhecendo os efeitos desses casamentos no Brasil e assegurando, quando aplicável, a correta definição do regime de bens. A falta de informação ou orientação pode gerar litígios, insegurança patrimonial e até exclusão de direitos em situações de sucessão, separação ou dissolução da sociedade conjugal.

ARPEN/GO: Quando um brasileiro se casa no exterior, qual regime de bens é aplicado por padrão, segundo o direito brasileiro?

Márcia Fidelis: A regra do artigo 7º, § 4º, da LINDB estabelece que o regime de bens do casamento entre brasileiros é regido pela lei do domicílio dos cônjuges no momento da celebração do casamento. Assim, se ambos residiam no Brasil na época do casamento, ainda que este tenha ocorrido no exterior, aplica-se o regime legal brasileiro — ou seja, o da comunhão parcial de bens, se não houver pacto antenupcial ou causa que leve à imposição da separação obrigatória.

Esse ponto é essencial e frequentemente negligenciado. Muitos casais, ao celebrarem casamento fora do Brasil, não buscam a lavratura de um pacto e acreditam que o regime de bens do país da celebração prevalecerá, o que pode não ocorrer. A residência habitual no Brasil é o critério de conexão que atrai a aplicação da lei brasileira quanto ao regime de bens.

ARPEN/GO: Em que situações o regime da separação obrigatória de bens é imposto nesses casos?

Márcia Fidelis: A separação obrigatória de bens aplica-se nos mesmos casos previstos na legislação brasileira, como, por exemplo, quando um dos nubentes é maior de 70 anos ou se a celebração ocorrer com inobservância de determinadas formalidades legais — a depender da situação.

Ou seja, ainda que o casamento seja celebrado no exterior, se o casal for de brasileiros e residir no Brasil à época do casamento, incidirá a norma do Código Civil que impõe a separação obrigatória nos casos legais (art. 1.641 do Código Civil), salvo decisão judicial em sentido contrário ou, por decisão recente do Supremo Tribunal Federal – STF, ARE 1309642 (Tema 1.236), pela lavratura de escritura pública afastando a imposição do regime obrigatório.

ARPEN/GO: Existe alguma maneira de o casal escolher outro regime de bens mesmo se o casamento for celebrado fora do Brasil? Como funciona esse processo?

Márcia Fidelis: Sim, existe. Os brasileiros que pretendem escolher um regime diverso do legal (comunhão parcial) devem firmar pacto antenupcial no Brasil, por escritura pública, antes da celebração do casamento no exterior. Esse pacto deve ser posteriormente registrado no Cartório de Registro de Imóveis do domicílio dos cônjuges.

O pacto é o único instrumento apto a afastar o regime legal supletivo. Sem ele, mesmo que o casal tenha declarado no exterior outro regime, como a separação total, essa escolha não terá validade no Brasil se os nubentes aqui residiam, à época do casamento — salvo se houver pacto antenupcial válido e anterior ao casamento.

Em qualquer hipótese, se houver pretensão de alteração de regime de bens durante o casamento, é necessária a intervenção judicial.

ARPEN/GO: Qual é o papel do cartório de registro civil brasileiro no reconhecimento e registro desse casamento celebrado fora do país?

Márcia Fidelis: O cartório é o responsável pela transcrição da certidão de casamento estrangeira no Livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais. Essa transcrição é indispensável para que o casamento produza efeitos no Brasil, inclusive para fins previdenciários, sucessórios e de alteração do nome de casados.

É o cartório que verificará a documentação apresentada (com tradução juramentada, apostilamento, se for o caso, e registro prévio no RTD) e lançará o casamento no sistema registral brasileiro. A atuação do registrador é essencial para garantir a validade e a eficácia do ato em território nacional.

ARPEN/GO: A ausência de um pacto antenupcial lavrado previamente no Brasil pode gerar insegurança jurídica para o casal? Como os registradores devem orientar nesses casos?

Márcia Fidelis: Sim, pode gerar insegurança jurídica significativa. Sem o pacto, o regime de bens será definido conforme o domicílio dos nubentes no momento do casamento, o que pode contrariar a intenção das partes e causar sérios prejuízos em eventual separação ou morte.

Os registradores devem orientar os casais brasileiros que pretendem se casar no exterior a firmar pacto antenupcial no Brasil, se desejarem adotar regime diverso do legal. Devem também informar sobre a necessidade de transcrição do casamento e, quando aplicável, de registrar o pacto em cartório de imóveis. A boa orientação, nesse caso, previne litígios e protege direitos.

ARPEN/GO: Qual a orientação mais importante que os registradores devem oferecer aos brasileiros que planejam se casar fora do país?

Márcia Fidelis: A orientação principal é que os efeitos patrimoniais no Brasil do casamento, para brasileiros, seguem a lei brasileira — e que, portanto, o regime de bens desejado, quando diverso da comunhão parcial, só será válido se houver pacto antenupcial lavrado por escritura pública – ou seja, antes da celebração.

Também é fundamental alertar para a necessidade de transcrição do casamento no Registro Civil brasileiro, de modo que ele produza efeitos plenos no país. O registrador deve agir como agente de cidadania e de informação, garantindo que os usuários compreendam o impacto jurídico de suas escolhas.

ARPEN/GO: Há alguma mudança legislativa ou normatização recente que impacta diretamente esse tema?

Márcia Fidelis: Sim. A mais significativa é a mudança recente no artigo 13 da Resolução nº 155 do CNJ, que trouxe maior clareza sobre os documentos exigidos para a transcrição de casamento realizado no exterior, especialmente no que se refere à comprovação do regime de bens.

Além disso, o Manual Consular de 2022, o Provimento nº 149/2023 do CNJ e decisões do STF sobre o tema reforçam a importância do tratamento técnico e uniforme da matéria, alinhando o procedimento registral às exigências internacionais, como a Convenção da Apostila de Haia.

ARPEN/GO: Qual o processo para transcrever a certidão de casamento do exterior para o Brasil? Pode ser feito de forma extrajudicial?

Márcia Fidelis: Sim, o processo é extrajudicial. O casal deve apresentar a certidão estrangeira de casamento (com tradução juramentada, apostilamento – se necessário – e registro no RTD) ao Cartório de Registro Civil do 1º Subdistrito do domicílio do(s) brasileiro(s), ou ao Cartório do 1º Ofício do Distrito Federal.

A certidão, acompanhada dos documentos exigidos pela Resolução CNJ 155 e, se for o caso, do pacto antenupcial lavrado no Brasil, será analisada pelo registrador e, estando tudo em ordem, transcrita no Livro E. Não há necessidade de processo judicial, o que representa um avanço da desjudicialização e da eficiência administrativa no Brasil.

ARPEN/GO: Para fechar, que mensagem gostaria de deixar para os profissionais que atuam nos cartórios sobre a importância de se manterem atualizados quanto ao direito internacional aplicado ao registro civil?

Márcia Fidelis: A atuação do registrador não se limita ao conhecimento da legislação interna. Vivemos em uma era de crescente transnacionalidade das relações, em que pessoas, afetos e patrimônios ultrapassam fronteiras. Cabe ao registrador compreender os impactos do direito internacional, dos tratados multilaterais, das normas de direito estrangeiro e da LINDB no exercício diário de sua função.

Manter-se atualizado não é apenas uma exigência técnica, mas um gesto de responsabilidade com o cidadão. O registrador é muitas vezes o primeiro e único contato da população com o sistema jurídico. Sua informação precisa e qualificada pode proteger patrimônios, reconhecer famílias e assegurar direitos fundamentais. Conhecer o direito internacional aplicado ao registro civil é, portanto, parte da missão constitucional do oficial de garantir segurança jurídica com humanidade e eficiência.

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TABELA XVI

ATOS DOS OFICIAIS DE REGISTRO CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS E DE INTERDIÇÕES E TUTELAS ANO 2022

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