Por Mónica Jardim
1. Brevíssima referência histórica sobre o Registro Civil1
A necessidade de se saber quem são as pessoas, qual é o seu nome, a sua filiação, o seu estado civil e o seu último momento na vida – o óbito – foi sentida desde a antiguidade.
Mas, é no Direito Romano que os especialistas identificam o berço do Registro Civil, atualmente em vigor nos países europeus e latino-americanos da civil law.
De fato, no Direito Romano já se previam determinadas inscrições públicas sobre o estado da pessoa, ainda que com um fim meramente estatístico e militar.
Para o demonstrar, basta recordar o episódio do nascimento de Jesus Cristo que, diz-se, só aconteceu em Belém porque um Imperador Romano havia determinado um recenseamento, para saber quantas eram as pessoas nascidas – e quais as suas particularidades -, naquele remoto recanto do seu Império.
Depois da oficialização da religião cristã e durante a Idade Média e Moderna o Registro Civil foi ficando, praticamente em toda a Europa, a cargo da Igreja. Consequentemente, os não católicos foram, naturalmente, excluídos dos registros eclesiásticos.
Tal realidade, com o passar dos séculos, passou a ser vista como uma fragilidade do Registro Civil ou como uma falha das monarquias, que não providenciavam um serviço de Registro Civil aos não católicos.
Os ideais iluministas, em oposição ao poder absoluto dos monarcas e da igreja católica, advogavam, como se sabe, a rutura entre a religião e o Estado e conduziram a que despontasse a convicção de que os direitos decorrentes do nascimento, do casamento e do óbito tinham de surgir, modificar-se, transmitir-se e extinguir-se independentemente da religião professada pelos indivíduos, devendo de ser o Estado a promover, para efeitos jurídicos, a constatação de tais factos, através de órgãos próprios.
Tal ideia, como se sabe, acabou por vingar com a Revolução Francesa2, tendo-se, então, determinado que a função do Registro Civil tinha de ser pública, pertencendo ao Estado ou aos municípios, pois apenas um sistema sob incumbência do Estado seria capaz de garantir o acesso de todos os cidadãos ao Registro Civil e aos direitos dele decorrentes, independentemente da religião professada.
Em Portugal, foi com o decreto de 16/5/1832, que o Registro Civil conheceu a primeira providência legislativa. Através dele o Estado reconheceu a vantagem de tornar extensiva a todos os indivíduos a prática da Igreja relativamente aos católicos, subordinando a realização do registro a princípios jurídicos uniformes, que assegurassem a sua regularidade e fiscalização.
A este decreto seguiram-se outros diplomas elaborados com objetivo de secularização do Registro Civil.
No entanto, o Registro Civil em Portugal só foi oficialmente instituído, após o fim da Monarquia (ou com a implantação da República), pelo Código do Registro Civil de 18/2/1911.
O mesmo ocorreu no Brasil, onde a proeminência da Igreja Católica e a sua boa organização administrativa conduziu a que fosse a única responsável pelo Registro Civil – cujos assentos eram realizados nos livros paroquiais – durante todo o período colonial. Mantendo tal competência, em exclusividade ou não, mesmo após a independência, até 1888.
Em virtude da laicização do Estado, em 1888, foi publicado o decreto 9.886, o qual fez cessar os efeitos civis dos registros eclesiásticos dando origem ao Registro Civil destinado à certificação do nascimento, casamento e óbito.
Portanto, quer em Portugal quer no Brasil, no século XIX, tornou-se evidente que o Registro Civil tinha de ser parte integrante da potestas do Estado sobre a população. E, até à atualidade, é manifesto que o Estado Português e o Brasileiro continuam a encarar o Registro Civil como parte da sua soberania, uma vez que é ele – o Registro Civil – que fixa autenticamente a individualidade jurídica de cada cidadão e serve de base aos seus direitos.
2. Da Relevância do Registro Civil
O Registro Civil faz parte da vida de todos. Os fatos mais importantes da existência humana – do nascimento com a aquisição da personalidade civil, à morte, que é o último momento da existência da pessoa natural, perpassando pelos fatos mais relevantes da trajetória dos indivíduos, como o casamento e eventuais alterações do estado da pessoa (emancipação, medidas de apoio a maior acompanhado, etc.), apenas são reconhecidos juridicamente se forem publicitados pelo Registro Civil e só podem ser devidamente comprovados através dos seus assentos e averbamentos.
Em consequência, o exercício da cidadania depende do Registro Civil. De fato, sem registro de nascimento, uma pessoa, oficialmente, inexiste para o Estado – como coloca em evidência uma ONG angolana, intitulada Handeka, no seu projeto “Sem Registro, Não Existo”.
Só com o registro de nascimento uma pessoa passa a existir juridicamente e a poder exercer a sua cidadania.
Quem não tem registro de nascimento não pode obter diversos documentos, tais como o NIF ou CPF, a carteira de trabalho, o número de segurança social, o cartão de eleitor. Consequentemente, vê-se privado da possibilidade de exercer os direitos e de cumprir os deveres que aos mesmos estão associados (de trabalhar; de contribuir com parte dos seus rendimentos para a segurança social e para o Estado em geral, de beneficiar dos sistemas de ensino e de saúde públicos, bem como de reforma ou aposentadoria).
Acresce que sem registro de nascimento uma pessoa não pode abrir conta num banco, nem adquirir imóveis.
Por fim, quem não existe no Registro Civil não tem liberdade de locomoção, pois, pelo menos, não se pode ausentar para o exterior do país onde nasceu. Ora, a liberdade de locomoção ou de movimento constitui a primeira forma de liberdade física que o ser humano teve de conquistar – a ela opõe-se à prisão.
Recordamos ainda que o Registro Civil é o suporte que garante a efetividade de direitos constitucionalmente consagrados, tais como: À identidade pessoal (abrangendo a identidade de gênero), à filiação, à capacidade civil, à maternidade e à paternidade, à tutela da família, ao casamento.
Em síntese, para cada pessoa, individualmente considerada, o Registro Civil representa o veículo de acesso ao “mundo dos direitos”.
Mas, o Registro Civil não assume relevância apenas individual, sendo inquestionável a sua importância para o Estado. O acabado de afirmar é inegável quando se tem presente que a população é o primeiro elemento de um Estado, desde logo, porque não é possível conceber um sem população.
Acresce que qualquer Estado necessita de informações sobre a sua população para, adequadamente, gizar e concretizar políticas públicas.
Por fim, recordamos que a existência de não registados gera desigualdade social, econômica, cultural, política, etc. e, portanto, consubstancia um problema da sociedade, o mesmo é dizer, do Estado.
Ainda a propósito da importância do Registro Civil, cumpre referir que nas últimas décadas, em virtude do fenômeno da desjudiciarização, múltiplos processos e procedimentos deixaram de ser da competência do Poder Judiciário e passaram a ser dos cartórios do Registro Civil, com evidentes ganhos quanto à acessibilidade, simplificação procedimental, celeridade e efetividade, sem que fosse descurada a segurança jurídica, necessária à tutela dos interesses em causa. De fato, sob fio condutor da efetividade social3, muitos e importantes papéis passaram a ser desempenhados pelo Registro Civil: O reconhecimento voluntário de paternidade, a realização de casamentos homoafetivos, a alteração do nome próprio e/ou do sobrenome, a alteração do sexo mencionado nos documentos, etc.
Ora, o que mais se destaca nestas novas atribuições, sem desprestigio das demais que compõem o expediente dos serviços de Registro Civil, é que promovem a liberdade de se ser o que se é, bem como, a igualdade de todos, entre si e perante o Estado, assim combatendo o preconceito e a discriminação.
Em suma, estas novas atribuições do Registro Civil sobressaem porque asseguram ou realizam, efetivamente, a dignidade humana!
Porque assim é, não se pode questionar a potencialidade de os serviços de Registro Civil virem a assumir novas competências.
3. Três antigas questões a propósito do Registro Civil:
A) Por que razão o valor acrescentado pelo Registro Civil não se evidencia de forma notória? – Em face das vantagens proporcionadas pelo Registro Civil, numa primeira reflexão, tende-se a considerar estranho o fato de Este ser subvalorizado. Não obstante, a resposta à questão colocada – Por que razão o valor acrescentado pelo Registro Civil não se evidencia de forma notória? – é simples:
A mais-valia gerada pelo Registro Civil é subvalorizada porque é um dado adquirido!
Explicitemos o afirmado, com uma comparação:
A baixa de Lisboa está toda ela assente em grandes vigas de madeira enterradas a grande profundidade. Sem estas vigas invisíveis tal parte da cidade afundar-se-ia. E, no entanto, a generalidade das pessoas que por ela passeia ou que nela vive não têm real consciência da importância vital de tais vigas.
O mesmo acontece com o Registro Civil!
Enquanto existe quase que não se não se dá conta dele, se faltasse todos notariam!
B) O Registro Civil deve continuar a cargo do Estado? – Tendo em conta todo o exposto, a resposta a esta questão parece-nos inequivocamente afirmativa.
Mais, na nossa perspectiva, a prestação de serviços de Registro Civil deve competir exclusivamente ao Estado, não devendo ser repartida com entidades privadas.4 Designadamente, tendo em conta a imensa base de dados existente nos serviços de Registro Civil e a imperiosa necessidade de a mesma ser gerida de modo muito cauteloso.
A propósito do acabado de defender, recordamos que Arnold Toynbee5, um dos historiadores europeus mais importantes do século XX, escreveu como na Alemanha e no regime de Hitler, os judeus foram sistematicamente isolados da vida económica e política, antes de serem eliminados fisicamente, e como tal só foi possível por o regime ter beneficiado da informação que proporcionava um sistema “eficiente” de Registro Civil – em pouco tempo foi possível identificá-los, determinar, com precisão, o número das suas propriedades e empresas, tendo-se, assim, iniciado a perseguição econômica com a publicação de leis que os proibia de, por exemplo, exercer medicina, enfermagem ou advocacia, subscrever seguros, constituir empresas ou aceder à propriedade.
Um ano foi suficiente, naquela época, para conseguir centralizar toda a informação sobre os judeus e empreender a perseguição.
É claro que não foi a perfeição do Registro Civil germânico que esteve na base da espoliação dos judeus. Todos sabemos que a verdadeira causa esteve na doutrina que os considerava seres a exterminar. Mas, o exemplo revela a enorme importância da base de dados existente nos serviços de Registro Civil e a necessidade de ela ser utilizada de modo extremamente prudente, maxime em um século no qual os dados são o novo petróleo, mas, ou por isso, se tornou inegável o direito fundamental à proteção dos dados pessoais.
C) Devem determinados atos do Registro Civil ser gratuitos?
Como anteriormente afirmamos, o Registro Civil garante o acesso de todas as pessoas ao “mundo dos direitos”, promove a liberdade de se ser o que se é, a igualdade de todos – entre si e perante o Estado -, combatendo o preconceito e a discriminação e realizando, efetivamente, a dignidade humana!
Ora, assim sendo, a gratuidade, reduzindo o sub-registro e a informalidade, é imprescindível para cada pessoa em si e por si, para a sociedade e para o Estado.
Sendo, para nós, tal incontestável, também consideramos inquestionável que sempre que as funções registais não sejam exercidas directamente pelo Estado, mas por entidades privadas em regime de delegação ou concessão, estas devem receber a contraprestação correspondente à sua actividade, devendo a gratuitidade ser assegurada a expensas do Estado, o mesmo é dizer, de todos os seus cidadãos.6
4. Alguns desafios do Registro Civil na Atualidade
No mundo pós-moderno e globalizado ocorreu e ocorre um fenómeno de convergência entre a evolução da tecnologia e a modificação do direito substantivo aplicável ao Registro Civil.
Tal fenômeno caracteriza-se por duas particularidades:
Grande amplitude;
Extrema rapidez.
Quanto à evolução da tecnologia, escusamos de tecer qualquer comentário, pois é um facto inegável.
A propósito das mudanças do direito substantivo aplicável ao Registro Civil limitamo-nos a recordar: a admissibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo7; o reconhecimento de efeitos à união de facto/união estável; o reconhecimento do direito à mudança do nome próprio e do sobrenome; o reconhecimento do direito a ver alterada a menção do sexo feita nos documentos; a admissibilidade da gestação de substituição/”barriga de aluguer”.8
A evolução da tecnologia impõe um Registro Civil Digital – como já existe, por exemplo, na Suíça, na Estónia e na Rússia -, no entanto, inegavelmente, envolve riscos, tais como: Erros de transcrição; fraude; possibilidade de “hackeamento”.
As mudanças no direito substantivo, por seu turno, têm, necessariamente, de ser espelhadas no Registro Civil, mas, como se sabe, ambas podem ser indevida e abusivamente utilizadas. Designadamente:
¾ a mudança do nome próprio em um País e do sobrenome em um outro pode verificar-se com o intuito de dificultar a identificação.
¾ a mudança da menção do sexo nos documentos pode, em abstrato, ocorrer para se obter gratuitamente a alteração do nome (assim, onde a mudança de nome próprio tem um custo, mas a mudança da menção do sexo e nome é gratuita) ou porque se intenta cometer violência de gênero e por ela não ser punido ou, ainda, porque se pretende garantir que em caso de prisão se cumprirá pena em um instituto prisional feminino.
Em face do acabado de afirmar são, inequivocamente, múltiplos os desafios com que se depara o Registro Civil na atualidade.
Acresce que, temos por certo, muitos outros reptos surgirão. A título de mero exemplo, basta recordar o facto de a abordagem binária estar a ser repudiada tendo já conduzido a que:
¾ A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, através da Resolução 2.191 (2017), apelasse aos Estados Membros do Conselho da Europa, no que diz respeito aos estado civil e ao reconhecimento legal de género, que assegurem – sempre que as classificações de gênero sejam utilizadas pelas autoridades públicas – que esteja disponível, para todas as pessoas (incluindo as pessoas intersexuais que não se identificam nem como homens nem como mulheres), um leque de opções de marcadores de gênero. Sugerindo, em consonância com o que tem vindo a ser defendido na comunidade internacional, como alternativa à criação de marcadores não-binários, vir a tornar-se opcional, para todos, o registro do sexo nos assentos de nascimento e noutros documentos de identidade.
¾ A ordem jurídica Alemã introduzisse a “categoria” diversificado ou diverso (cfr. § 22 (3) Personenstandgesetz).
¾ Em março de 2024, no Brasil, fosse emitida uma certidão de nascimento declarando que a pessoa é intersexo.
Fonte: Migalhas